Matéria escrita por Luís Eduardo Gomes, publicada originalmente em 10 de fevereiro de 2020.
Quais são os principais problemas e
os maiores desafios enfrentados pelas cidades em 2020? Quais são os
instrumentos que as prefeituras têm para combater a desigualdade social? Quais
medidas podem tornar nossos centros urbanos mais sustentáveis? Para ajudar
a responder essas questões, o Sul21 conversou o arquiteto e
urbanista Fernando de Mello Franco, que foi secretário de Desenvolvimento
Urbano da cidade de São Paulo na gestão de Fernando Haddad (2013-2016).
O urbanista destaca que as cidades
são, fundamentalmente, espaços de disputa, não sendo possível falar de cidades
sem que sejam levadas em conta as disputas por acessos a serviços, ao espaço
urbano e a outros bens. “Nessa cidade, querendo ou não, a gente precisa
de certos instrumentos de mediação e de facilitação desses processos legítimos
de disputa e, para isso, há todo o marco regulatório existente dentro do
conjunto de instrumentos previstos”, afirma Fernando de Mello, que liderou a
revisão do plano diretor da capital paulista e mudanças na lei de zoneamento da
cidade.
Ele destaca que o processo de revisão
desses marcos regulatórios, que ocorreu em São Paulo em meio à onda de
protestos que eclodiram no País a partir de 2013, não pode ser feito sem que
haja uma forte articulação política e participação da sociedade civil para
garantir sua legitimação. Na entrevista a seguir, questionamos o urbanista
sobre quais serão os tópicos que, ele acredita, irão pautar as eleições
municipais de 2020 e quais as ferramentas disponíveis para as prefeituras
lidarem com eles.
Sul21 – Os movimentos sociais urbanos
são resultado de uma disputa pela cidade, pela questão da mobilidade, por
acesso a serviços públicos, em suma, uma disputa pelas condições de vida numa
cidade. Quais são as grandes questões que tu achas que estarão em pauta nas
eleições de 2020?
Fernando de Mello: A gente vê uma questão muito importante que não é só a disputa,
mas o direito à cidade. Acho que os movimentos de 2013 estão renovando a pauta
histórica que sempre foi do direito à moradia digna, bem localizada. Essa
pauta, que era muito localizada na habitação, explodiu e se difundiu para todos
os setores da vida urbana. Isso tudo, de certa forma, continua. Até porque, a
partir de então, a crise econômica impactou evidentemente na capacidade do poder
público de reagir às demandas da população, cada vez mais difusas e, ao mesmo
tempo, intensas, com toda a restrição orçamentária e tal. Mas a disputa é pelo
orçamento que tem e ele não é distribuído de forma equânime. E a forma pela
qual as decisões são tomadas cria algo que é fundamental, que é a questão da
desigualdade. Ela acentua a desigualdade. Ao acentuar a desigualdade e também
criar fatores de valorização diferentes ao longo do território, também promove
o que a gente chama tecnicamente de gentrificação,
a substituição de uma certa população por outra em situações econômicas mais
favoráveis. A gentrificação gera expulsão, gera maior dificuldades de acesso ao
direito à cidade.
Além da questão da desigualdade, que
acho que não é só uma questão da cidade, o mundo inteiro está discutindo,
evidentemente, a questão ambiental. Oitenta e seis por cento dos brasileiros
vivem em cidades e a questão ambiental impacta diretamente a vida de todos nós
na cidade. O desmatamento da Amazônia não é um problema da Amazônia, ele
impacta no regime de chuvas do Sudeste, onde eu moro. Não sei como funciona no
Sul, mas no Sudeste tem impacto total. As questões ambientais estão aí para
ficar.
A gente tem também uma questão da
migração. Numa cidade como São Paulo, isso é muito forte, eu sei que Porto
Alegre também tem questões migratórias importantes. Também a questão do
trabalho. A gente está vendo as cidades serem transformadas por novas relações
de trabalho, de uma precariedade de trabalho estrutural, que é também uma
questão que atinge a forma pela qual os fluxos dos serviços e usos das cidades
se processam.
Sul21 – Tu tocou em vários pontos e
acho que a gente poderia desmembrar alguns deles. Nessa questão da
gentrificação, o Sul21 até fez um especial há
alguns anos sobre como ocorreu esse processo em Porto Alegre,
especialmente sobre como as populações negras acabaram, ao longo da história,
removidas e afastadas cada vez mais para as periferias. Isso também ficou muito
conhecido mundialmente a partir da gentrificação do Brooklyn, em Nova York, mas
vem ocorrendo no Brasil há décadas. O que eu queria perguntar é que caminhos
uma Prefeitura teria para fazer um movimento oposto, amenizar as desigualdades
sociais e melhorar o acesso a serviços públicos? Que tipo de instrumentos uma
Prefeitura tem hoje para atuar nessa área?
Fernando de Mello: A legislação brasileira oferece um cardápio daquilo que a gente
chama de instrumentos da recuperação da valorização imobiliária. Basicamente,
são instrumentos que trabalham com a ideia de que, assim como é dito na
Constituição que todo mundo tem direito à propriedade, a Constituição também
diz que a função social da propriedade tem que predominar e, ainda que você
tenha direito a uma propriedade, ela tem que cumprir a sua função social. A
gente tem instrumentos de recuperação da valorização imobiliária que partem do
pressuposto de que todo mundo pode construir no seu terreno, mas o solo criado,
aquilo que excede a área do terreno, o espaço aéreo, a densificação desse
terreno só é possível por causa dos investimentos públicos.
Se você não tem
investimento em infraestrutura, água, luz, rua, transporte, você não tem
capacidade de suportar esse adensamento. Portanto, o solo criado é um bem comum
e, a partir do momento que é um bem comum, as prefeituras teriam direito de
cobrar por esse bem comum. E os instrumentos de recuperação são justamente
aqueles instrumentos que tentam recuperar parte da valorização que os
investimentos públicos geraram numa propriedade.
Dando um exemplo claro, constrói uma
nova linha de metrô. Aqui em São Paulo, por exemplo, sabe-se que, em média, uma
propriedade se valoriza em 30%. Mas eu, proprietário, por que eu tenho direito
de ficar com essa valorização de 30% em cima de um dinheiro que não foi meu?
Não é investimento meu na propriedade, é um investimento público. Então, esses
instrumentos permitem que o poder público recupere parte do valor que o próprio
poder público, com dinheiro público, gerou. Isso dá capacidade de uma maior
equivalência, equidade, nas relações urbanas, no valor do solo e tudo mais.
Sul21 – Isso acaba não sendo muito
utilizado, não é?
Fernando de Mello: Olha, Porto Alegre aplica esses instrumentos. O conceito de solo
criado, se eu não estou enganado, foi bastante difundido, senão criado aí. São
Paulo se destaca no cenário nacional do ponto de vista da sofisticação e
implementação desses instrumentos. Mas eles existem em Porto Alegre e todos
conhecem esses instrumentos. E tem uma outra coisa que responde também à tua
pergunta que é outro instrumento que é o chamado PEUC [Parcelamento,
Edificação ou Utilização Compulsórios], que diz que, se você comprova que
uma propriedade não está cumprindo a sua função social, o poder público tem
direito a aumentar progressivamente o IPTU de forma a forçar que essa
propriedade retorne ao mercado. Caso o proprietário não a retorne ao mercado,
ele vai sendo onerado por esse IPTU [Imposto Predial Territorial Urbano] progressivo
e, após cinco anos, o poder público tem direito a expropriar pagando com
títulos da dívida pública.
A ideia desse instrumento não é os governos locais
saírem desapropriando, mas justamente forçar os proprietários a retornarem ao
mercado. Qual é o impacto disso? São Paulo, dependendo da conta do município,
tem um déficit de 360 mil unidades de moradia e tem cerca de 250 mil unidades
fechadas. Se você acelera ou provoca o reingresso desses imóveis ao mercado,
você tem uma super oferta e essa super oferta ajuda a regular o preço dos
imóveis. É uma medida anti especulação imobiliária.
E tem medidas mais radicais como
Berlim está fazendo agora. Congelou o preço dos alugueis por cinco anos,
período o qual a prefeitura imagina que poder público e capital privado vão
poder produzir um número de unidades que reequilibre o mercado. Tem várias
cidades no mundo inteiro pensando nessa questão de coibir de fato, segurar o
preço dos aluguéis.
E tem instrumentos também que a gente, em São Paulo, chama
de cota de solidariedade, Nova York chama de inclusionary housing, que
são instrumentos que exigem que, a partir de um certo tamanho de construção,
uma certa percentagem do que se constrói, em qualquer lugar da cidade, seja
destinada para habitação de interesse social. É uma forma de tentar estabelecer
instrumentos de inclusão social e/ou possibilidade de permanência dessas
populações onde elas moram.
Na conversa com o Sul21, Fernando de Mello Franco destaca instrumentos que as cidades dispõem para enfrentar a questão da desigualdade social | Foto: Divulgação/Prefeitura de São Paulo. |
Sul21 – Tu falastes em especulação
imobiliária, que é uma expressão muito utilizada, mas, às vezes, é pouco
explicada. Como funciona esse especulação imobiliária, quais são os objetivos
dos proprietários ao segurar unidades fechadas?
Fernando de Mello: São vários processos, depende muito do contexto. Por exemplo, isso
é muito usual em cidades médias, cidades em crescimento. Eu pego e faço um
desenvolvimento imobiliário em uma área relativamente distante da cidade, que
eu faço por um custo barato porque o preço da terra é barato num lugar
desprovido de infraestrutura, e, a partir do momento em que eu urbanizei, as
pessoas que vão morar fazem uma pressão junto ao poder público para levar essa
infraestrutura para lá. A partir do momento que o poder público leva a
infraestrutura, há uma valorização que é dada ao terreno sem que o agente
imobiliário tenha investido e sido responsável por ela. Eu, o empreendedor,
retenho parte dessa terra e, quando chega a infraestrutura pública, eu ganho de
presente essa valorização. Isso é uma forma de especulação.
Outro exemplo é investir em imóveis
sem a menor intenção de usá-los, simplesmente como uma forma de guardar
dinheiro na espera de que todo o processo social e de transformação da cidade
ao longo do tempo vá, por sua vez, não só resguardar o valor daquele imóvel,
como também agregando valor.
Então, basicamente a retenção de terra é a mesma
coisa que guardar lugar no cinema ou numa praia. Você manda lá um caseiro botar
um guarda-sol às seis hora da manhã, quando não tem ninguém na praia, no lugar
mais bacana da praia. Você fica dormindo, tomando café e, quando você chega, a
praia está lotada, mas tem o lugar reservado. Você tem essa forma de resguardar
uma ociosidade da terra sem que seja obrigado a dar uma função social e sem que
outro possa usar essa terra que está sendo guardada para você para o momento em
que você queira o privilégio de usá-la ou transacioná-la.
Sul21 – Voltando um pouco à questão
da sustentabilidade. Fala-se há muito tempo nessa questão, mas parece que os
poderes públicos municipais ainda estão bastante atrasados no Brasil em tomar
medidas para que as cidades sejam, de fato, mais sustentáveis. A gente ainda vê
muita priorização do automóvel e muito pouco avanço em escala municipal da
promoção de fontes de energia renováveis. Olhando para o futuro, o que o senhor
vê de medidas factíveis a curto ou médio prazo que pudessem transformar as
nossas cidades em mais sustentáveis?
Fernando de Mello: O que a gente está vendo é um total desmantelamento da capacidade
de pesquisa, reflexão e crítica no País nesse momento, com incidência direta na
questão da sustentabilidade. E isso é dramático, porque isso veio para ficar,
não é brincadeira, não é um mito, é uma realidade. Não há estudo científico que
comprove que o quadro de emergência climática não exista, pelo contrário. E a
gente precisa trabalhar nisso. Não do ponto de vista do conhecimento que o
Brasil tem acumulado, mas da capacidade de decisão política e conscientização
da sociedade que ampara as decisões políticas. A gente precisaria, de fato,
rever, resguardar, tanto os nossos patrimônios florestais, a nossa
biodiversidade, quanto hídricos, coisa que não tem sido feita.
A disputa pela
água também está sendo feita e isso tem impacto na cidade, ela sofre com isso,
mas ela também é um agente muito grande de degradação dos recursos hídricos.
Hoje também é necessário uma mudança de matriz energética, sobretudo nos
transportes, que é o maior emissor de gases poluentes. Também seria fundamental
transicionar, de fato, da locomoção individual com veículo movido a combustível
fóssil para uma matriz limpa e ao mesmo tempo com prioridade ao transporte
público.
A gente precisa rever também os sistemas alimentares das cidades e
rever a maneira pela qual a relação do campo e da cidade vai se estabelecendo
com impacto direto no meio ambiente. E também a consciência de que a questão
educacional é um problema ambiental. A precariedade da habitação gera um impacto
gigantesco no meio ambiente, basta a gente relacionar à urbanização informal e
os recursos hídricos para ver que caminham lado a lado, um poluindo o outro.
Sul21 – Tem como resolver, hoje, de
forma séria, a questão do saneamento sem resolver primeiro a questão da
moradia?
Fernando de Mello: A questão do saneamento e da moradia caminham em paralelo, um é um
irmão siamês do outro, em certa medida. São problemas inter-relacionados. Não
dá para resolver um sem pensar o outro, e vice-versa.
Sul21 – Justamente por que, para tu
levar saneamento, tem que resolver essa questão de precariedade da moradia, não
é?
Fernando de Mello: É, o que tem que se fazer é pensar todos os instrumentos
urbanísticos e as políticas públicas de maneira a garantir que haja um certo
nível de adensamento, sobretudo em áreas subutilizadas ou ociosas já providas
de infraestrutura de saneamento básico em detrimento da expansão das cidades
linearmente e, sobretudo, sobre áreas ambientalmente sensíveis. Não tem muita
mágica, esse é um problema de grande parte das cidades. Se a gente não
resguardar o direito às cidades das populações mais carentes, essas populações
vão ser jogadas para onde há importantes serviços ambientais sendo gerados ou
deixando de ser gerados pelo impacto da urbanização informal. E aí tem que
encarar de frente que as cidades precisam ser adensadas, compartilhadas, e que
precisam ser cidades onde as classes sociais coexistam em um certo nível de
possibilidade. A expulsão dessas classes para fora da cidade não vai resolver
os problemas ambientais, pelo contrário, só vai acirrá-los.
Sul21 – Aqui em Porto Alegre,
especialmente na gestão passada, muito se falava de ‘smart cities‘, as
cidades inteligentes. Esse termo não é nenhuma novidade, data da virada do século
passado e sempre se cita Barcelona como exemplo. Hoje, já se usa o termo smart
cities 2.0, 3.0, 4.0, especialmente relacionado à internet das coisas,
às possibilidades que a internet cada vez mais rápida traz para as cidades. Tu
achas que existe algum exemplo de cidade no Brasil que pode ser considerada
uma smart city? O que ela tem de bom e o que falta para as nossas
cidades trilharem esse caminho?
Fernando de Mello: Eu não gosto desse termo, essa matriz de smart é
um conceito delicado. É claro que a tecnologia é importante e ela resolve uma
série de coisas, mas não é a cidade que tem que ser inteligente, é a sociedade
e as decisões tomadas pela sociedade e por seus representantes políticos que
têm que ser inteligentes. Não dá para a gente atribuir a gestão da cidade a
conjuntos de algoritmos, até porque, quem controla esses algoritmos, quem
define esses algoritmos? Eu acredito no poder da informação, da tecnologia, mas
acho que a gente está bem longe de uma visão, de fato, construtiva da maneira
pela qual utilizá-la. Esse conceito [smart city] foi cunhado por um
grupo de empresas querendo vender tecnologias proprietárias e tal. A gente tem
outras formas de fazer isso sem sermos reféns de sistemas que a gente não tem
acesso aos códigos-chave e tudo mais. Então, eu vejo com bastante ressalva essa
questão da smart city.
Nenhum comentário:
Postar um comentário