segunda-feira, 28 de novembro de 2016

São Luís. MUNICÍPIO É CONDENADO A RECUPERAR E MANTER ÁREAS PÚBLICAS DO LOTEAMENTO BEQUIMÃO.

Em sentença publicada nessa quarta-feira (23), o juiz Douglas de Melo Martins, atendendo a pedido do Ministério Público na Ação Civil Pública nº 7673-62.1998.8.10.0001, condenou o Município de São Luís a, no prazo de 5 anos, a contar da intimação da sentença, usar os meios adequados judiciais e extrajudiciais para repelir a turbação, o esbulho e a indevida utilização das áreas públicas do loteamento Bequimão, devendo recuperá-las e mantê-las em normais condições de utilização pelo público em geral, atendendo suas funções ambientais e urbanísticas.
Segue íntegra da sentença abaixo.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA 7673-62.1998.8.10.0001 (76731998)
AUTOR MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL
PROMOTOR DE JUSTIÇA LUIS FERNANDO CABRAL BARRETO JUNIOR
RÉU: MUNICÍPIO DE SÃO LUÍS
PROCURADOR FRANCISCO ALCIOMAR DOS SANTOS COSTA.


SENTENÇA
1. Relatório
1.1 Da Petição Inicial

O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL ajuizou Ação Civil Pública de Obrigação de Fazer em desfavor do MUNICÍPIO DE SÃO LUÍS, por danos causados à ordem urbanística.

Relata a inicial a existência de ocupação de áreas verdes e institucionais no loteamento Cohab-Bequimão, autorizadas por concessões de direito real de uso, em que o município concede a algumas entidades o domínio útil de áreas públicas sem autorização legal ou licitação.

Após tentativas infrutíferas de acesso a dados através de requisições dirigidas ao réu e à SEMTHURB, o município informou ter conhecimento das ocupações ilegais na área verde nº 3 e na área institucional nº 1 do loteamento.

Alega o Parquet que o Município de São Luís tem o dever de garantir que estas áreas atendam ao Plano Diretor e ao Zoneamento Municipal em prol da coletividade, não se omitindo e nem permitindo que sejam abandonadas, usurpadas ou tratadas como bens dominicais.

Requer ao final:

“1 – No prazo não superior a dois anos (art. 18, V da Lei nº 6.766/79), usar os meios adequados judiciais e extrajudiciais para repelir a turbação, o esbulho e a indevida utilização das áreas públicas do loteamento Bequimão, especialmente a área verde n.º03 e a área institucional n.º01, devendo recuperá-las e mantê-las em normais condições de utilização pelo público em geral, atendendo suas funções ambientais e urbanísticas, sob pena de incidência de multa fixada por esse douto Juízo, consoante o art. 11 da Lei n.º 7.347/85;

2 – Em prazo fixado por essa digna autoridade judiciária, promover a revisão de todas as concessões de direito real de uso celebradas com terras do loteamento Bequimão, anulando as que não tiverem sido realizadas mediante licitação e autorização legislativa, e ainda que o tenham, quando sua finalidade for incompatível com a destinação pública da área, devendo encaminhar para tanto, amplo levantamento dessa revisão a esse douto Juízo, sob pena de não fazendo qualquer dessas providências, ser-lhe cominada multa diária fixada nos termos do art. 11 da Lei n.º 7.347/85.

A vertente ação civil pública tem por objeto a condenação do Município nas supra especificadas obrigações de fazer, ex vi do art. 2º da lei n.º 7.347/85, com o teor imposto pelos art. 110 a 117 e demais dispositivos da lei n.º 8.078/90.

Nessa oportunidade requer-se também:

1 – A citação do Município na pessoa de seu representante legal, ex vi do art. 215 do CPC, para, querendo, contestar a ação sob pena de revelia e confissão e acompanhá-la até o final;

2 – A produção de toda e qualquer modalidade de prova lícita e necessária, em especial perícias, vistorias, inspeções judiciais, juntada de documentos, e etc.;

3 – A requisição por esse Douto Juízo nos termos dos arts. 355 e 356 do CPC, de todas as concessões de direito real de uso celebradas com áreas do loteamento Bequimão, especialmente as celebradas com: Cooperativa Educacional de São Luís; Associação Cristo Rei; Associação dos Barreirinhenses residentes em São Luís, Congregação Cristã no Brasil e federação espírita do Maranhão. Esse requerimento tem a finalidade de efetuar e complementar a prova documental sonegada pela SMTHURB. Tais documentos se encontram com o Município, quer na SEMTHURB, Procuradoria Geral do Município e Gabinete do Prefeito Municipal.”

1.2 Da Contestação
Às fls. 100-101, o Município de São Luís contesta a existência de concessões de direito real sobre as áreas apontadas, informando que, em alguns casos, há permissão administrativa, a título precário, para funcionamento de entidades de caráter social, evitando assim a ocorrência de invasões.

Informa que as poucas permissões se referem a áreas institucionais, e que não há permissão ou concessão em área verde.

Requer a análise de cada caso em particular, pugna pela produção de todas as provas admitidas em direito, pede ser julgada improcedente a ação.

1.3 Principais ocorrências processuais
O Município de São Luís acosta às fls. 107-183 mapas, documentos e os “termos de concessão” da área explicando que, apesar da denominação “concessão”, trata-se de contratos de permissão de uso de bem público, dado o seu caráter precário.

Aduz ter procedido com diversas intimações e ameaças de demolição de construções irregulares provando que não foi omisso na fiscalização e implemento da política urbana.

Em réplica (fls. 188-195), o autor alega existirem as concessões de direito real de uso, consoante documentos acostados aos autos, em que o réu chama de permissão de uso. Descreve a título de exemplo o documento de fl. 110, onde a permissão não é somente de uso, mas para construir e modificar a paisagem urbana, o que só seria permitido através de licitação e autorização legislativa. 

Conclui que todas as áreas inalienáveis foram ilegalmente concedidas a terceiros.

Audiência preliminar realizada em 26 de junho de 2001 (fls. 201-202). Foram levantados pelo autor os seguintes pontos controvertidos: i. “a existência de concessões de direito real de uso sobre áreas públicas do loteamento Bequimão celebradas em desacordo com a legislação vigente”; ii. “a omissão do poder público municipal em utilizar todos os meios legais para reprimir o esbulho”. 

O réu formulou como ponto controvertido “que as ocupações autorizadas se deram somente em relação as áreas institucionais e jamais em relação as áreas verdes”. 

A Juíza deferiu prova pericial e requereu ao município todas as concessões, especialmente as celebradas com: Cooperativa Educacional de São Luís; Associação Cristo Rei; Associação Barreirinhenses residentes em São Luís; Congregação Cristã no Brasil e Federação espírita no Maranhão.

Termo de Concessões apresentados: Federação espírita do Maranhão (fls. 206-208 e 217-220); Congregação Cristã no Brasil (209-211 e 220-225); Associação dos Agentes de Saúde Comunitários da Ilha de São Luís (fls. 212-213); Associação Cristo Rei (226-229).

Em 18 de julho de 2013 os autos foram remetidos à Vara de Interesses Difusos e Coletivos (fls. 326-327).

Laudo pericial acostado às fls. 350-397.

Às fls. 403 o Ministério Público impugnou o laudo pericial por apresentar conclusões de natureza jurídica.

Intimada a responder os quesitos de forma objetiva, a perita acostou laudo pericial complementar com respostas aos quesitos às fls. 413 e 419-432 e 444-447.

O autor apresenta parecer técnico às fls. 436-438.

Audiência de Instrução e Julgamento realizada em 11 de outubro de 2016 (fls. 462). O autor apresentou alegações finais orais. O Município de São Luís juntou alegações finais às fls. 467-475.

É o relatório.

2. FUNDAMENTOS DA DECISÃO
A Constituição da República, no art. 182, caput, atribuiu ao município a tarefa de promover a política de desenvolvimento urbano, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Di Sarno (2004)1, citando a carta de Atenas, enuncia quatro funções da cidade: habitação, trabalho, recreação (lazer) e circulação. No mesmo sentido, Fiorillo2 (2009) refere que a cidade somente cumpre sua função social quando disponibiliza a seus habitantes condições de terem moradia digna, espaços de convivência para o desfrute do lazer e da recreação, rede viária e transporte adequados, além de proporcionar condições econômicas para o desenvolvimento de atividades laborativas.

Um dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para implementação da política urbana e alcance das funções sociais da cidade é o instituto do parcelamento do solo. A Lei nº 6.766/79, que regula a criação de parcelamentos, prevê a reserva de área proporcional ao loteamento para ser destinada à instituição de espaços públicos de uso comum.

Essas áreas públicas se destinam a instalação de praças, áreas verdes, jardins; ou equipamentos comunitários, tais como: creches, escolas, delegacias, postos de saúde e similares. O uso é livre a quaisquer sujeitos, em conformidade com as normas gerais, sem a necessidade da manifestação da administração pública reportando-se a algum indivíduo em específico.

São consideradas bens de uso comum do povo (CC, art. 99, I), inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Tais áreas, independentemente de registro imobiliário (STJ, REsp nº 900873/SP), passam ao domínio do município por concurso voluntário.

Nos dizeres de Celso Antonio Bandeira de Melo (2012, p.942)3 os bens de uso comum “servem para serem utilizados indistintamente por quaisquer sujeitos, em concorrência igualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o destino do bem e condições que não lhe causem uma sobrecarga invulgar”.

Destinadas ao desenvolvimento de uma função urbanística específica, as áreas públicas decorrentes de loteamento não podem ter sua destinação alterada pelo particular ou pelo Poder Público, por ato administrativo ou por lei. São, portanto, insuscetíveis de desafetação.

Nesse sentido, vale transcrever os artigos 17 e 22 da Lei nº 6.766/1979:
Art. 17. Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências do art. 23 desta Lei.
[...]
Art. 22. Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo".

Ao admitir-se entendimento contrário, estar-se-ia impondo à coletividade ônus de suportar uma diminuição na qualidade de vida dos habitantes da cidade, com o consequente comprometimento de seu bem-estar, pois as áreas previstas como de uso público nos loteamentos exercem uma função pública prevista no planejamento urbanístico e visa, sobretudo, ao atendimento do direito difuso ao meio ambiente equilibrado e do desfrute das funções sociais da cidade relacionadas ao lazer e à recreação.

A inobservância das diretrizes que visam a implementação de uma política de desenvolvimento urbano influi diretamente em diversos setores sociais. Cite-se, por exemplo, problemas relacionados à violência urbana. Em nossa cidade, embora não lhe seja algo peculiar em relação à maioria das cidades brasileiras, bairros periféricos que tradicionalmente surgem por invasões e, portanto, à revelia de qualquer controle do município, são desprovidos de espaços públicos destinados à convivência comunitária, ao lazer e recreação, que contribuem para produzir relações de pertencimento e identidade com o local.

Nesses mesmos bairros, os índices de violência urbana são os mais altos da cidade. Conquanto não seja o remédio para todos os problemas ligados à violência, a implementação de uma política de desenvolvimento urbano contribuiria certamente para mitigá-los. Desfazer-se desses espaços, que já são poucos em nossa cidade, não é o melhor caminho.

A política urbana impõe diversas limitações ao direito de propriedade do particular. A destinação de áreas públicas é uma delas, já que o loteador (proprietário) é obrigado a dispor de parte de sua gleba em favor da coletividade, embora se integre ao patrimônio do município. Se ao particular é imposta esta “doação”, ao município, por ser o administrador legal dessas áreas públicas, impõe-se uma obrigação maior de zelo por elas exercendo sua missão constitucional de promover o desenvolvimento da política urbana (CF, art. 182), sendo-lhe vedado se desfazer desses espaços livres ou se omitir ao dever de fiscalizar ocupações ilegais.

Nesse sentido, é pertinente a transcrição dos julgados abaixo que confirmam o entendimento aqui delineado:
PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE - CONTROLE DIFUSO - POSSIBILIDADE "É POSSÍVEL A DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE, NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DE QUAISQUER LEIS OU ATOS NORMATIVOS DO PODER PÚBLICO, DESDE QUE A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL NÃO FIGURE COMO PEDIDO, MAS SIM COMO CAUSA DE PEDIR, FUNDAMENTO OU SIMPLES QUESTÃO PREJUDICIAL, INDISPENSÁVEL À RESOLUÇÃO DO LITÍGIO PRINCIPAL, EM TORNO DA TUTELA DO INTERESSE PÚBLICO" (RESP Nº 403355/DF, MIN. ELIANA CALMON) - ADMINISTRATIVO - ÁREA DO LOTEAMENTO DESTINADA A ESPAÇO VERDE - DESAFETAÇÃO - CONSTRUÇÃO DE EDIFICAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE. […] 2 A área obrigatoriamente reservada pelo loteador e cedida ao Município em cumprimento às disposições da Lei do Parcelamento do Solo Urbano, "embora passe a integrar o patrimônio público, vincula-se ao interesse da ocupação racional e organizada daquela fração do espaço urbano. 

Serve, assim, à preservação de áreas de lazer, ao respeito ao meio ambiente e ao acesso comunitário aos serviços essenciais prestados pelo Poder Público" (AC nº 2002.011186-0, Des. Pedro Manoel Abreu). Inviável assim a desafetação da área e a sua destinação para fim diverso do legalmente previsto. (Apelação Cível nº 2011.063515-1, 3ª Câmara de Direito Público do TJSC, Rel. Luiz Cézar Medeiros. j. 19.03.2013).


APELAÇÕES CÍVEIS - PREVENÇÃO AFASTADA - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DOAÇÃO DE BEM PÚBLICO A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO PELO MUNICÍPIO DE VILA VELHA - INSTALAÇÃO DE POLO INDUSTRIAL - DISPENSA DE LICITAÇÃO - AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - DESAFETAÇÃO DE ÁREAS DESTINADAS A INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS COMUNITÁRIOS - ILEGALIDADE DA DOAÇÃO - DESPROVIMENTO.
[…]
2. É vedada a desafetação de área de loteamento destinada, consoante o art. 17 da Lei nº 6.766/79, a instalação de equipamentos comunitários.
[…]
4. Apelos desprovidos. (Apelação Cível nº 0019853-47.2007.8.08.0035, 4ª Câmara Cível do TJES, Rel. Carlos Roberto Mignone. j. 10.09.2012, unânime, DJ 26.09.2012).

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, a jurisprudência tem se mantido no mesmo sentido, ou seja, quanto à impossibilidade de desafetação de bem de uso comum do povo adquirido por força do art. 22 da Lei nº 6.766/1979. Veja-se:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO PARQUET. INTERESSE PÚBLICO. DESAFETAÇÃO DE BEM COMUM. IMPOSSIBILIDADE. ALIENAÇÃO ATRAVÉS DE LEILÃO. VÍCIO.

I- Legitima-se o Ministério Público a toda e qualquer demanda que vise à defesa do patrimônio público (neste inserido o histórico, cultural, urbanístico, ambiental, etc), sob o ângulo material (perdas e danos) ou imaterial (lesão à moralidade). 

II- É pacífico o entendimento no STJ no sentido de que a inconstitucionalidade de determinada lei pode ser alegada em ação civil pública, desde que a título de causa de pedir - e não de pedido -, uma vez que, neste caso, o controle de constitucionalidade terá caráter incidental. Precedentes. 

III- Deve-se reconhecer a imprescritibilidade da ação civil pública que tem natureza declaratória e desconstitutiva. 

IV- Os bens de uso comum não (sic) inalienáveis, sendo inconstitucional a lei que modifica a sua destinação em ofensa ao art. 182 e 225 da CF. 

V- É nulo o leilão realizado para fins de alienação de imóvel desafetado, cuja modalidade prevista no art. 17 da Lei nº 8.666/93 é a concorrência. (Ap 0111202010, Rel. Desembargador(a) JORGE RACHID MUBÁRACK MALUF, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, julgado em 25/10/2012, DJe 31/10/2012). O Min. Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1135807/RS, posicionou-se contrário à possibilidade de desafetação de espaços livres de uso comum decorrentes de loteamento, aduzindo o seguinte:[…] 7. De toda sorte, registre-se, em obiter dictum, que, embora seja de inequívoco interesse coletivo viabilizar a prestação de serviços a pessoas de baixa renda, não se justifica, nos dias atuais, que praças, jardins, parques e bulevares públicos, ou qualquer área verde municipal de uso comum do povo, sofram desafetação para a edificação de prédios e construções, governamentais ou não, tanto mais ao se considerar, nas cidades brasileiras, a insuficiência ou absoluta carência desses lugares de convivência social. 

Quando realizada sem critérios objetivos e tecnicamente sólidos, maldotada na consideração de possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos valores e funções nele condensados, a desafetação de bem público transforma-se em vandalismo estatal, mais repreensível que a profanação privada, pois a dominialidade pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu primeiro, maior e mais combativo protetor. Por outro lado, é ilegítimo, para não dizer imoral ou ímprobo, à Administração, sob o argumento do "estado de abandono" das áreas públicas, pretender motivar o seu aniquilamento absoluto, por meio de desafetação. 

Entender de maneira diversa corresponderia a atribuir à recriminável omissão estatal a prerrogativa de inspirar e apressar a privatização ou a transformação do bem de uso comum do povo em categoria distinta. Finalmente, tampouco há de servir de justificativa a simples alegação de não uso ou pouco uso do espaço pela população, pois a finalidade desses locais públicos não se resume, nem se esgota, na imediata e efetiva utilização, bastando a simples disponibilização, hoje e sobretudo para o futuro - um investimento ou poupança na espera de tempos de melhor compreensão da centralidade e de estima pela utilidade do patrimônio coletivo. [...] (REsp 1135807/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/04/2010, DJe 08/03/2012). A destinação de espaços públicos de uso comum visa, ainda, dar efetividade a diretrizes fixadas no Estatuto da Cidade que, em seu art. 2º, garante o direito a cidades sustentáveis “entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

A desafetação dessas áreas configura, portanto, lesão a interesse difuso, consubstanciado no direito ao pleno atendimento da função social da cidade e ao bem-estar de seus habitantes, e que não pode ser afastada da apreciação do Poder Judiciário.

No caso dos autos, ficou comprovado que áreas verdes e institucionais do loteamento Bequimão, no decorrer dos anos, estão sendo ocupadas por particulares irregularmente, ora com a conivência do Município de São Luís (por meio de concessões de direito real de uso) ora diante de sua completa omissão quanto ao dever de fiscalização.

Foram identificadas residências, igrejas, construções comerciais, entre outros. O laudo pericial de fls. 350-397, complementado pelos documentos de fl. 418-432, confirma e identifica a existência de ocupações irregulares em 8 das 9 áreas públicas previstas no loteamento Bequimão.

Quanto à utilização das concessões de direito real de uso, ainda que se admitisse a possibilidade de o Poder Público dispor de bens uso comum do povo em favor de particulares, frise-se ser instrumento inadequado para esta finalidade, porquanto somente aplicável a bens dominicais (MELLO, 2012; GASPARINI4, 2008; DI PIETRO5, 2007), na medida em que tal instrumento transfere o domínio útil do imóvel, criando-se, assim, uma relação de natureza real.

Os bens de uso comum do povo não são passíveis de utilização exclusiva por parte de determinado particular, sob pena de desvirtuar sua destinação afeta ao uso comum. Excepcionalmente admite-se essa hipótese, mas através de permissões precárias por parte do Poder Público, submetidas à licitação, e desde que não se desvirtue ou prejudique a função a que foi afetado o bem.

Não há que se cogitar, outrossim, de presunção de legitimidade de qualquer ato administrativo que autorize o uso privativo de área pública adquirida em decorrência do cumprimento do artigo 22 da Lei 6766/79, em desconformidade com sua função prevista no plano de loteamento, vez que são inalienáveis, indisponíveis, imprescritíveis e insuscetíveis de desafetação.

Ademais, não é raro que as “doações” de terras públicas a particulares (igrejas, associações e outras entidades que congregam pessoas), sem a observância de princípios basilares da Administração Pública, especialmente a impessoalidade e a moralidade, sejam utilizadas com objetivos nada republicanos, por exemplo para captar apoio político e angariar votos em períodos eleitorais, numa expressão da velha prática do clientelismo.

Em situações de lesão ao meio ambiente, embora dolorido ao julgador determinar desocupações de áreas que há bastante tempo possam estar ocupadas, mesmo que irregularmente, a decisão judicial tem o condão de tutelar interesses não apenas das presentes mas também das gerações futuras. Entre as consequências para alguns poucos e o benefício de um sem número que ainda virão, impõe-se a defesa do ambiente urbano de forma prospectiva.

3. DISPOSITIVO
ACOLHO, em parte, os pedidos formulados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO (CPC, art. 487, I) e, por conseguinte:

a. DECLARO a nulidade de todas as concessões de direito real de uso, cujo objeto sejam as áreas públicas decorrentes do loteamento Bequimão, com fundamento nos artigos arts. 17 e 22 da Lei nº 6.766/1979.

b. CONDENO o Município de São Luís a, no prazo de 5 anos, a contar da intimação da sentença, usar os meios adequados judiciais e extrajudiciais para repelir a turbação, o esbulho e a indevida utilização das áreas públicas do loteamento Bequimão, devendo recuperá-las e mantê-las em normais condições de utilização pelo público em geral, atendendo suas funções ambientais e urbanísticas.

c. DETERMINO ao Município de São Luís que, no prazo de 180 dias, a contar da intimação da sentença, apresente nos autos cronograma das atividades a serem desenvolvidas para o cumprimento da sentença. O cronograma deverá contemplar o cumprimento de, no mínimo, 20% (vinte por cento) ao ano, do comando sentencial.

Em caso de descumprimento de qualquer das medidas acima determinadas, FIXO multa diária no valor de R$ 1.000,00.

PUBLIQUE-SE. INTIMEM-SE.

São Luís, 23 de novembro de 2016.

Juiz DOUGLAS DE MELO MARTINS

Titular da Vara de Interesses Difusos e Coletivos

1DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. São Paulo: Manole, 2004.


2FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

3MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo brasileiro – 29. Ed. rev. Atual. E ampl. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 60.


4GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 13ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

5DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ed. São Paulo: Atlas, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário